Confraria dos Afogados é uma coletânea de contos dividida em duas partes. Na primeira, temas variados do realismo fantástico emergem em tom mais nostálgico. Na segunda parte, Valença e região do Baixo Sul são pano de fundo para inusitadas histórias, algumas mais picantes, outras folclóricas. “São historias que afloram do dia a dia das pessoas, das crendices, do disse me disse. O realismo fantástico permeia quase toda minha obra”, conclui o escritor.
A ARTE DE FABULAR
Em uma célebre metáfora, o escritor argentino Julio Cortázar compara o romance a uma luta de boxe que se ganha por pontos, e o conto a um pugilato em que se vence por nocaute. De fato, no romance o autor pode ir para as cordas e depois sair delas como no final eletrizante de uma luta no ringue, em que um boxeador escondeu o jogo para surpreender, com um demolidor gancho, o adversário favorito no embate. Já no conto, o jogo é rápido, cirúrgico, preciso, não se pode errar o golpe sob pena de estragar toda a história e perder uma luta que se encaminhava para a vitória. Ousaria acrescentar que o conto é navegação costeira e o romance viagem transatlântica pelos mares da realidade e da fantasia.
De nocaute entende o escritor Alfredo Gonçalves de Lima Neto, médico nascido em Salvador e radicado em Valença, no baixo sul da Bahia, uma vez que deixa o leitor atordoado com as reviravoltas de suas histórias, que têm o tempero do realismo mágico, da realidade pura e simples e do erotismo das boas histórias lascivas. Também de navegação costeira, ao fazer suas histórias singrarem pelos mares do Baixo Sul da Bahia.
Prova-o este novo livro de contos de Lima Neto: Confraria dos Afogados. Nele, como em livros anteriores, a exemplo de O Homem da Lupara Amarela (romance de 2016), em que transplanta para o sertão baiano o cerne da desdita de Édipo Rei, a mais conhecida tragédia de Sófocles (496 ou 494 a.C – 406 a.C) e de As Vivências e Lembramentos de Aluana Carpideira (um faroeste caboclo); o escritor valenciano demonstra a sua capacidade de fabulação, aquele dom de esticar a história, sem perder o fio da meada, para atiçar a curiosidade do leitor. O maior exemplo universal da fabulação é o clássico As mil e uma noite em que a bela e astuta Sherezade consegue salvar a própria vida e de muitas mulheres esticando relatos para um rei cruel e ávido por histórias de aventuras.
Fabular é, portanto, deixar chover na imaginação para molhar de fantasias a mente do leitor. E fantasias não faltam nos quatorze contos de Confraria dos Afogados. O primeiro deles, Ecos da Inocência é, como o nome já indica, o passeio pela infância, neste caso de dois irmãos, numa atmosfera sobrenatural, de sonambulismo e fantasmagoria, como a imagem obsessiva do “homem comprido, à semelhança de um sinal de exclamação” e da inefável Tia Anelice.
O segundo relato, As Aparições de Clarice, é uma homenagem a escritora Clarice Lispector. É também a obsessão de um homem que vê o rosto de Clarice em todas as mulheres que cruzaram a vida dele. Gume é de causar arrepios como uma navalha afiada na garganta. O Preço da Renúncia releva as agruras de um padre libidinoso.
TEMPERO MISTERIOSO
O Poeta Imaginário e Seu Casarão Inexistente tem a marca da oralidade. Das histórias passadas de geração a geração, para contar a trajetória de um nefelibata que sequer vivia nas nuvens, mas se dissolve como uma nuvem breve. Voz é uma análise psicológica de um homem em que a dicção parece determinar o destino. A Pedra é uma história de desamor regada a álcool e a referências religiosas, como as Tábuas do Velho Testamento. Foz é um conto de concepção borgeana, patente logo na abertura:
Entre os trinta e oito monges libertinos que frequentavam as naves de opalina de pertença ao czar Gnur de Abdain, um deles não cria na opulência proclamada pelas seis tabulas do Corpúsculo de Abaçaí, descoberto por Piron, entre os apócrifos cristãos atribuídos aos Gnupis.
A inexorável passagem do tempo, que a todos desbota (como um quadro antigo dos avôs na parede de uma casa velha) é o tema de Memorial dos Esquecidos, onde vemos a dolente frase: Somente morremos quando somos esquecidos. Conto que dá nome ao livro, Confraria dos Afogados é uma história de pescadores. Quatro deles morrem afogados. Depois sucede um pacto do além que mostra que é salgado, bem salgado, morrer no mar.
As Mabaças Valencianas conta o encontro e o desencontro de duas gêmeas univitelinas, idênticas no rosto, mas diferentes na alma. Em A Moquequeira do Baixo-Sul, ao estilo picaresco de Jorge Amado, Alfredo Gonçalves de Lima Neto solta a imaginação pelas partes pudendas de uma cozinheira que faz sucesso com um tempero picante, cujo segredo ela só passa à filha e sucessora. É um condimento com cheiro forte, afrodisíaco e apreciado (com ou sem moderação) nos melhores restaurantes praianos e também nos cacetes armados de beira de estrada. Por fim vem a fábula amorosa A Sereia do Tento. Se, num verso famoso, o poeta estadunidense (nacionalizado britânico) T.S Eliot diz:
Ouvi cantar as sereias, uma para as outras.
Não creio que um dia cantem para mim.
No último conto do livro, uma majestosa sereia irá cantar para um triste, jovem e celibatário viúvo. É assim, com histórias que se passam em Valença e arredores, como a Ilha do Tinharé, e muita imaginação que Alfredo Gonçalves de Lima Neto fabula e confabula em Confraria dos Afogados, mantendo o leitor em suspense até o final das histórias.
Assim é a ficção: arte de fabular.
Elieser Cesar – Escritor e jornalista
Salvador (BA), Setembro de 2022