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Assim disse Iahweh dos Exércitos:
Atendei! Chamai as carpideiras, para que venham!
Mandai procurar as mulheres hábeis, para que venham!
Que elas se apressem e cantem sobre nós uma lamentação!
Que nossos olhos derramem lágrimas,
e nossas pálpebras deixem correr água. (Profecia de Jeremias, 9: 16-17).

 

A profissão das carpideiras acompanha a história da humanidade em seus momentos de luto e sofrimento. O texto bíblico e a história egípcia, por exemplo, testemunham isso, evidenciando o quanto essas figuras participavam do cotidiano das sociedades antigas, oferecendo seus serviços (e sendo pagas por isso)nos rituais fúnebres. Eram profissionais do prantoe tinham, sob sua responsabilidade,o dever de marcar e reforçar o lamento, a tristeza, a dor, o desespero, potencializando, ao máximo, as emoções inerentes ao campo da morte. No Nordeste brasileiro, a tradição das carpideiras se alia a outro ofício fúnebre, o das mulheres “cantadeiras de inselências”, adaptando-se aos costumes locais ao misturar reza e lamentos.

Alfredo Lima Neto recupera esse ofício tão antigo neste seu romance, colocando, no centro de sua narrativa, uma personagem cuja profissão era chorar as mortes. Aluana Carpideira carrega, em seu nome, os seus sofrimentos e as dores alheias. O nome próprio Aluanacontém, em si, várias partes: A, lua, ana, na, de modo que nos aponta para duas direções interpretativas autorizadas pelo romance. Ana é sinônimo de compaixão, clemência. Lua, por sua vez, remete à transformação, periodicidade, passagem da vida à morte. Nesse sentido, Aluana é – ao mesmo tempo – a que tem compaixão (e isso fica evidente na sua profissão de carpir e até ressuscitar os mortos) e a que traz a vida e a morte (também aliada à sua profissão). Pela ação de carpir, Aluana (a que sofre influências da Lua) provoca mudanças profundas em Encovado. A partir do momento em que ela para de exercer seu ofício (com a morte misteriosa do filho), abate-se sobre o povoado uma espécie de maldição: a seca torna permanente sobre a terra, e a morte cobre, com seu manto, toda a comunidade, desencadeando a rivalidade principal que irá tensionar a narrativa. Aqui,Aluana é a dona da morte. No instante de sua morte, do contrário, ela é a dona da vida, quando “por todo sertão choveu durante quarenta dias e quarenta noites. Esquecidos córregos voltaram a correr. Rolaram os seixos em alegre cantoria”. Entretanto, essa força vital provocará uma outra espécie de morte, quando os ossos dos defuntos serão expostos de suas sepulturas, causando maior incômodo aos moradores da localidade.

Neste quinto livro, Alfredo continua desdobrando e perseguindo um tema que lhe é muito caro: o da morte. Desde o seu primeiro livro autoral (Os encantos da morte, 2010), essa temática tem acompanhado seus escritos, sejam eles em prosa, sejam eles em poesia. Há, nesses textos, aliado ao erotismo, um encantamento em relação a Thânatos que se evidencia, muitas vezes, no seu lado sombrio, violento e perverso. Em As vivências e lembramentos de Aluana Carpideira, as faces perversas da morte são apresentadas em toda a narrativa, desde sua epígrafe às suas linhas finais. Morrem vários personagens, morre a terra esturricada pelo sol, morre a natureza, personificada na personagem principal da história.

O livro é um diálogo permanente com outros textos. Alfredo traz, para seu romance, personagens de outras histórias (Sargento Getúlio, uma versão de Antônio Conselheiro, Abigail) fragmentos de narrativas suas e alheias, referências diretas e indiretas a autores e figuras ficcionais (O corvo, de Poe; Os sertões, de Euclides da Cunha, Viva o povo brasileiro e Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, personagem de Oscar Wilde;“Asa Branca” de Luiz Gonzaga;“Poema de sete faces”, de Drummond;Medéia, de Eurípedes e Gota d’água, de Chico Buarque, etc.), de modo que sua obra vai exigindo do leitor uma atenção maior, na perspectiva de estabelecer novos sentidos a partir dessas relações intertextuais. A obra ganha bastante com esses diálogos. Um dos momentos mais altos do livro acontece quando o autor faz uso desseexpediente narrativo. O capítulo mais lírico e – na minha perspectiva – o mais forte do romance é o que narra a história de Abigail e seus pássaros (Capítulo IX- O passaredo em cuja sina a mofina vida vem cegar), aproveitamento de um conto publicado pelo autor em 2016. Ainda no campo da intertextualidade, Alfredo recupera o tema do conflito familiar narrado em Abril despedaçado (a narrativa de Ismail Kadaré e a adaptação fílmica feita por Walter Salles), fazendo dessa intriga a mola propulsora do romance nas terras secas deEncovado, lugarejo situado no sertão da Bahia. De um lado, a família de Aluana; do outro, a violência de Serapião Cospe-Bala e seus capangas, fazendodo espaço um verdadeiro campo de guerra e morte.

Além do tema da morte, dos elementos fantástico e maravilhoso, da retomada de personagens e passagens suas, o autor, neste livro, dá continuidade a outros temas que têm atravessado a sua ficção. Neste romance, reaparece, por exemplo,a temática da cegueira, já desenvolvida em alguns contos, sobretudo em “O amor é cego” (de Os dribles do acaso, 2013), “O cego Damião” e “Os olhos do Espelhado”(ambos de O cego Damião e seu cavalo de doze patas, 2017), e no último romance, O homem da lupara amarela. Esse aspecto está ligado ao tema da castração simbólica, que aparece, na ficção alfredina, sob a forma de mutilações, anunciando a castração total: a morte.

As personagens que compõem este romance são previsíveis, denunciadas pelos próprios nomes que já trazem, em si, o anúncio do que são. Os nomes dos personagens são signos que apontam para seus destinos ou para suas personalidades. Povoam esse romance nomes-funções como Chico Bebivento, Deusdete Desditoso, Ritinha Mela-Mela, Serapião Cospe-Fogo, João Desdobrado, Corta Orêia, Bento Beato, Ataíde Boca-Murcha, Cândida Prazerosa, Abdias Destilado, etc. Segundo Ana Maria Machado, em Recado do nome[1], quando um autor confere um Nome a um personagem, já tem uma ideia do papel que lhe destina. Conforme a autora, o Nome pode vir a agir sobre o personagem e até mesmo a modificá-lo, mas, quando isso acontece, tal fato vem apenas confirmar que a coerência interna do texto exige que o Nome signifique. Desse modo, conclui a autora, “É lícito supor que, em grande parte dos casos, o Nome do personagem é anterior à página escrita” (MACHADO, 2013, p. 30). Alfredo, mais uma vez, segue por esse caminho, emprestando aos personagens nomes que os definem, como já fizera em tantos outros textos.

A narrativa, em muitos momentos, volta-se para si mesma, fazendo do livro um romance -também- autorreferencial. Há um narrador que conta as histórias em terceira pessoa, valendo-se da voz de Prudente Funileiro que recolhe as muitas histórias contadas em Encovado. Assim, os fios narrativos dispersos da tradição são recolhidos, compondo várias narrativas que se enovelam em torno da figura central, Aluana Carpideira. Nesse emaranhado de vozes, a narrativa mimetiza a vida daprotagonista e a sua própria história. Isso acontece na mistura de tons narrativos, combinando, pela linguagem, o seco e o molhado. Há (na maior parte do romance) momentos em que a narrativa está focada nos fatos, de forma direta e objetiva. Em outros (os mais profícuos), a narrativa adentra o mundo interior dos personagens (em poucos momentos) ou derrama-se em prosa poética, numa linguagem bastante expressiva, potencializada pelas metáforas e outros recursos estilísticos. É como se, pela linguagem poética, a narrativa embebesse o solo árido de Encovado. Funciona como metáfora das águas dos olhos de Aluana que secam após a morte do filho, mas que aparecem, ao longo da narrativa, banhando e suavizando a aridez da história, que é entrecortada por grandes violências e mortes constantes. As vidas secas, nesta narrativa, para além da sintaxe também áspera, são mergulhadas na suavidade da linguagem lírica que Alfredo sabe tanto manejar. Dessa conjugação de vida e morte, aridez e fertilidade, denotação e conotação, seco e molhado, resulta uma narrativa bem pensada, amarrada em seus fios e condensada em 11 capítulos espiralados pelo carpir de Aluana. A carpideira-protagonista é tudo isto: sertão e rio, vida e morte, secura e represa.

Em certa passagem do livro, o narrador oral, sentado à venda de Abdias Destilado e diante de sua plateia (Tuca Abecedário, Lotérico das Rifas e Lulu da Farinha), como Sherazade em sua economia narrativa, pondera a respeito da necessidade de controlar a história para ordená-la no eixo tempo-espacial. “Mas não nos adiantemos aos fatos, posto que, assim como na vida, as lembranças e a nossa presente história carecem de ordem e tempo para lograr a sua colheita”. Vou seguir a prudência de Funileiro e encerrar essas observações sobre o romance para que, assim, a colheita do leitor seja mais farta e pródiga que a minha. Que esse, com sua curiosidade, atravesse este sertão, amparado pela solidão de Abigail e pelos devaneios de Vivente Vai e Vem, na certeza de que, como a plateia de Prudente, certas “coisas não carecem de explicação, tampouco de entendimento. São assim e pronto.”

 

Gilson Antunes da Silva – Doutor em Literatura e Cultura, membro da AVELA, do GLICAM e professor-pesquisador do IF Baiano (Campus Valença).

[1]MACHADO, Ana Maria. Recado do nome: leitura de Guimarães Rosa à luz do Nome de seus personagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.