LEITURA ÍNTIMA E DESNORTEANTE
É somente na escrita que podemos lutar contra o caos, que é o nosso mundo.
– Jorge Luís Borges
Andei pensando sobre escrever a respeito de uma obra como a de Alfredo Gonçalves de Lima Neto. Demorei-me mais que devia nessa empreitada justo porque, a princípio, veio-me adesconfiança de que é a Alfredo que as coisas acontecem. E com tal milimetragem, com tãointensa vitalidade e estranhamento, que eu me vejo, ao lê-lo, num universo paralelo desituações jamais experimentadas ou vistas na imaginação.
Foi assim que a experiência de um sorriso me traduziu o prazer negado a quem se viu semdentes por quase toda uma vida. Sabia como era o sorriso de alguém desdentado, sabia quehavia um sorriso de dentro que se esboça sem que seja preciso a exibição dental. Mas descobrio sorriso de Celuta em mim, em “O sorriso roubado”. A quem não faltam dentes, um sorrisode outro a quem falta, igual ao meu.
Seus contos se oferecem como um insight de algo que dormita dentro de nós e que carece dedecifração, franqueando-nos o que se apresenta antes como provocação e enigma, um acessoespecial à famosa “fenda”, de que nos fala Jorge Luís Borges.
Tal fenda seria um ponto de conexão, um espaço imaginário interno dos seres humanos, cujoacesso não se obtém pelo saber das coisas. Se vivemos nas molduras, a expressão dasaparências que habitam fora de nós e – mais do que nunca emoldurados queremos estar nasredes sociais – é nas fendas que nos descobrimos e nos afirmamos em nossa condiçãohumana. Para Borges, a escrita é a metáfora do Universo, onde se encontram as verdadesabsolutas. Em “O inquilino dos espelhos”, vivi a verdade de Alfa Dzeta, habitante dos espelhos,eu própria, traficando o caleidoscópio do tempo nas histórias que vivo, sem me dar conta dasutileza dos seus enigmas.
Mas o que conversa comigo em “O cego Damião e seu cavalo de doze patas” é o menino queme habita sem ser eu. Meu fascínio pela relíquia memorialista, com seus bibelôs internos guardados na cristaleira. Medo de não ter aprovação, de ser uma criança má por ter acuriosidade de desvendar o mistério dos inacessíveis. Pois a leitura dos contos deste livro faz soar o cristal interior, na fricção das pedras do sabido por fora, ensejada pelo raio daimaginação, porção mais rica da inteligência e portal da genialidade.
Além de alcançar essa fenda imaginária que conecta leitor e autor, a Literatura transita pelanossa identidade pessoal, nosso Eu profundo, nossa obscuridade. Faz-nos descobrir facesinusitadas de nós mesmos, reveladas em diferentes situações vividas pelos personagens. Pelasminúcias sensoriais dos contos de Alfredo Gonçalves de Lima Neto, neste livro, a alteridadeexperimenta o “duplo”, presente na literatura latino-americana em Borges e Júlio Cortázar,bem assim em Guimarães Rosa, Murilo Rubião, Lygia Fagundes Teles, dentre outros, do qualpartilhamos em profusão lendo, por exemplo, “Histórias de medo e de infância”, ou“Passaredo”, este último, guardando similaridade com Mia Couto, em “O menino que escreviaversos”, cuja temática da criança que transborda o querer ser outro, que explode oinconformismo do ser, prisioneiro ao mundo das molduras, transpõe o próprio modelonarrativo para uma abordagem técnico-narrativa com intensa poetização do discurso eabertura à imaginação, a exploração do tempo e do espaço psicológico, além de uma poderosacarga de ambiguidade em fronteiras imprecisas entre elementos imaginários e dados darealidade.
Faço um desafio aos leitores e não leitores: peregrinem pelas próximas páginas como umviajante ávido por descobertas. Ou como um colecionador de curiosidades. Garanto que faráuma travessia por aprendizagens da vida, descobrindo, por exemplo, o quanto este mundointerno é real, oposto ao simulacro do de fora. A leitura dos contos de Alfredo Gonçalves émais uma descoberta “daquilo que éramos antes de ser o que não sabemos se somos”, naspalavras de Cortázar, as quais tomo por empréstimo para bem definir a experiência da leituradeste livro.
Rosângela Góes Figueiredo